quinta-feira, 18 de junho de 2020

PINÓQUIO # 35 - Capitulo XXXV de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XXXV

   Pinóquio, assim que se despediu do seu bom amigo Atum, deu alguns passos às cegas no meio daquela escuridão e começou a caminhar às apalpadelas dentro do corpo do Tubarão, dirigindo-se, passo a passo, para aquela luzinha pequenina que via brilhar lá muito longe.
   E conforme caminhava sentia que os seus pés chafurdavam num carco de água gordurosa e escorregadia, que exalava um cheiro tão forte a peixe frito que até parecia que se estava na Quaresma.
   À medida que ia avançando, o clarão ia-se tornando mais brilhante e distinto; até que, ao fim de muito caminhar, conseguiu lá chegar, e quando lá chegou... o que foi que encontrou? Aposto que não conseguem adivinhar. Encontrou uma mesinha posta, em cima da qual estava uma vela acesa enfiada numa garrafa de vidro verde e, sentado à mesa, um velhinho com o cabelo todo branco como se fosse de neve ou de chantilly, que estava entretido a petiscar uns peixinhos vivos, mas mesmo tão vivos que por vezes até lhe fugiam da boca enquanto ele os mastigava.
   Ao vê-lo, o pobre Pinóquio teve uma alegria tão grande e tão inesperada, que pouco faltou para entrar em delírio. Queria rir, queria chorar, queria dizer um monte de coisas; e em vez disso só conseguia emitir sons confusos e gaguejar palavras incompletas e sem sentido. Por fim conseguiu dar um grito de alegria e, abrindo os braços e lançando-se ao pescoço do velhote, começou a gritar:
   - Oh! Querido paizinho! Finalmente encontrei-te! Agora nunca mais te deixo, nunca mais, nunca mais!
   - Quer dizer que os meus olhos me falam verdade? – retorquiu o velhote, esfregando os olhos. – Então és mesmo o meu querido Pinóquio?
   - Sim, sim, sou eu, sou eu mesmo! E tu já me perdoaste, não é verdade? Oh! Querido paizinho, como és bondoso!... e pensar que eu, pelo contrário... Oh!, mas se soubesses quantas desgraças me caíram em cima e quantas coisas me correram mal! Imagina que no dia em que tu, meu pobre paizinho, vendeste o casaco para me comprar a cartilha para eu ir à escola, eu fugi para ir ver os fantoches, e o dono dos fantoches queria pôr-me no lume para lhe acabar de assar o carneiro, que foi o mesmo que depois me deu cinco moedas de ouro para eu te levar, mas eu encontrei a Raposa e o Gato que me levaram à estalagem do Lagostim Encarnado, onde eles comeram que nem lobos, e tendo partido sozinho de noite encontrei os assassinos que se puseram a correr atrás de mim, e eu a fugir e eles sempre atrás, e eu a fugir até que eles me enforcaram num ramo do Carvalho Grande, onde a linda Menina dos cabelos azul-turquesa me mandou buscar num coche, e os médicos, depois de me observarem, disseram logo: “Se não está morto, é sinal que continua vivo”, e então deixei escapulir uma mentira e o nariz começou a crescer-me e já não passava pela porta do quarto, motivo por que fui com a Raposa e com o Gato enterrar as quatro moedas de ouro, pois tinha gasto uma na estalagem, e o Papagaio pôs-se a rir, e em vez de duas mil moedas já não encontrei nenhuma, a qual o Juiz, quando soube que eu tinha sido roubado, mandou-me logo meter na cadeia para dar uma satisfação aos ladrões, quando me vinha embora de lá vi um belo cacho de uvas num campo, e fiquei preso na armadilha, e o lavrador com toda a razão pôs-me uma coleira de cão para eu ficar de guarda à capoeira, mas reconheceu a minha inocência e deixou-me ir embora, e a Serpente, com a cauda a deitar fumo, começou-se a rir e rebentou-lhe uma veia no peito, e o Pombo ao ver-me chorar disse-me: “Vi o teu pai a fazer um barquinho para ir à tua procura”, e eu disse-lhe: “Oh!, se eu também tivesse asas!”, e ele disse-me: “Queres ir ter com o teu pai?”, e eu disse-lhe: “Quem me dera! Mas quem é que leva?”, e ele disse-me: “Monta-te nas minhas costas”, e foi assim que voámos toda a noite, e depois de manhã todos od pescadores que olhavam para o mar me disseram: “Está ali um pobre homem num barquinho quase a afogar-se”, e eu de longe reconheci-te logo, porque mo dizia o coração, e fiz-te sinal para voltares para a praia.
   - Também eu te reconheci – disse Gepeto -, e queria voltar para a praia; mas como? O mar estava revolto, e um vagalhão virou-me o barco. Então, um Tubarão horrível que estava ali perto, assim que me viu na água correu para mim e, deitando a língua para fora, apanhou-me imediatamente e engoliu-me como se eu fosse um feijão.
   - E há quanto tempo que estás aqui fechado? – perguntou Pinóquio.
   - Desde aquele dia; deve haver uns dois anos. Dois ano, querido Pinóquio, que me têm parecido dois séculos.
   - E como é que te tens sustentado? E onde encontraste a vela? E quem te deu os fósforos para acender?
   - Já te conto tudo. Devo dizer-te que a mesma tempestade que virou o meu barquinho fez afundar também um navio mercante. Os marinheiros salvaram-se todos mas o navio foi ao fundo, e o mesmo Tubarão, que naquele dia estava com um excelente apetite, depois de me engolir a mim engoliu também o navio.
   - O quê? Engoliu-o todo duma vez? – perguntou Pinóquio, admirado.
   - Todo duma vez. E só cuspiu o mastro principal, porque lhe ficara entalado nos dentes como se fosse uma espinha. Para minha grande sorte, aquele navio vinha carregado de carne enlatada, de biscoitos, que é pão torrado que dura muito, de garrafas de vinho, de passas de uva, de queijo, de café, de açúcar, de velas de estearina e de caixas de fósforos. Com todas estas bençãos do céu consegui viver durante dois anos; mas hoje estou nos últimos restos: na despensa já não há nada, e esta vela que aqui vês acesa é a íltima que me resta.
   - E depois?...
   - E depois, meu querido, ficamos os dois no escuro.
   - Se assim é, paizinho – disse Pinóquio -, não há tempo a perder. Temos de pensar já em fugir.
   - Em fugir? Mas como?
   - Saindo pela boca do Tubarão e lançando-nos ao mar a nado.
   - Falas muito bem, mas eu, querido Pinóquio, não sei nadar.
   - E isso que importa?... Pões-te às minhas cavalitas e eu, que sou bom nadador, levo-te são e salvo até à praia.
   - Ilusões, mau rapaz! – replicou Gepeto, abanando a cabeça e sorrindo tristemente. – Achas possível que um boneco como tu, que não mede mais de um metro de altura, possa ter tanta força que seja capaz de nadar levando-me às cavalitas?
   - Experimenta e verás! De qualquer maneira, se estiver escrito no céu que vamos morrer, ao menos temos a consolação de morrer abraçados.
   E sem mais palavras, Pinóquio pegou na vela e, indo à frente para iluminar o caminho, disse ao pai:
   - Vem atrás de mim e não tenhas medo.
   E assim caminharam um bom bocado, atravessando todo o corpo e todo o estômago do Tubarão. Mas quando chegaram ao ponto onde começava a grande goela do monstro, pensaram bem em parar para dar uma olhadela e esperar pelo momento mais oportuno para a fuga.
   Agora devo dizer-vos que o Tubarão, por ser muito velho e sofrer de asma e de palpitações do coração, era obrigado a dormir de boca aberta; por isso Pinóquio, assomando-se onde começava a goela e olhando para cima, pôde ver do lado de fora daquela enorme boca escancarada um bom pedaço de céu estrelado e um luar maravilhoso.
   - Este é mesmo o momento de fugir – sussurou, voltando-se para o pai. – O Tubarão dorme como uma pedra, o mar está calmo, e vê-se como se fosse de dia. Vá, paizinho, vem atrás de mim e daqui a pouco estaremos salvos.
   Dito e feito. Subiram pela goela do monstro marinho e, quando chegaram àquela boca enorme, começaram a caminhar em bicos dos pés por cima da língua: uma língua tão larga e comprida, que até parecia a alameda de um jardim. E já estavam preparados para dar o grande salto e para se lançarem ao mar a nado, quando no último instante o Tubarão espirrou, e ao espirrar deu um solavanco tão grande que Pinóquio e Gepeto foram projectados para trás e atirados novamente para o fundo do estômago do monstro.
   Com o grande choque da queda a vela apagou-se, e pai e filho ficaram às escuras.
   - E agora?... – perguntou Pinóquio, muito sério.
   - Ora, rapaz, agora é que estamos perdidos!
   - Perdido porquê? Dá-me a mão, paizinho, e tem cuidado para não escorregares.
   - Par onde me levas?
   - Temos de tentar outra vez a fuga. Vem comigo e não tenhas medo.
   Dito isto, Pinóquio deu a mão ao pai e, caminhando em bicos de pés, voltaram a subir pela goela do monstro, depois atravessaram a língua toda e saltaram por cima das três fileiras de dentes. Mas antes de darem o grande salto, o boneco disse ao pai:
   - Põe-te às minhas cavalitas e abraça-te a mim com muita força. E deixa o resto comigo.
   Assi que Gepeto se acomodou muito bem sobre os ombeos do filho, Pinóquio, muito seguro de si, lançou-se à água e começou a nadar. O mar estava sereno como um espelho, a lua brilhava em todo o seu esplendor, e o Tubarão continuava a dormir com um sono tão profundo, que nem um tiro de canhão o teria acordado.

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia). Se detectarem algum erro ou gralha, agradecemos que nos enviem um mail a alertar.

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