terça-feira, 16 de junho de 2020

PINÓQUIO # 33 - Capitulo XXXIII de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XXXIII

Vendo que a porta não se abria, o Homenzinho escancarou-a com um violento pontapé; e, já dentro da sala, disse a Pinóquio e a Palito com o seu risinho habitual:
   - Perfeito, rapazes! Zurraram muito bem e eu reconheci-os logo pela voz. É por isso que aqui estou.
   Ao ouvirem estas palavras, os dois burrinhos ficaram acabrunhados e cabisbaixos, com as orelhas penduradas e o rabo entre as pernas.
   A princípio o Homenzinho alisou-lhes o pelo, fez-lhes festas e apalpou-os; depois puxou de uma escova e começou a escová-los muito bem.
   E quando, à força de tanto escovar, eles ficaram lustrosos como dois espelhos, pôs-lhes o cabresto e levou-os para a praça onde era o mercado, na esperança de os vender e de obter um lucro razoável com eles.
   E de facto os compradores não se fizeram esperar.
   Palito foi comprado por um lavrador a quem tinha morrido o burro no dia anterior, e Pinóquio foi vendido ao director de uma companhia de palhaços e saltimbancos, que o comprou para o amestrar e o ensinar a saltar e dançar juntamente com os outros animais da companhia.
   E agora já perceberam, meus pequeno leitores, qual era a bela profissão do Homenzinho? Este mostrengo horrível, que tinha um ar tão doce e suave, de vez em quando ia correr mundo com uma carruagem; pelo caminho ia recolhendo, com promessas e denguices, todos os rapazes mandriões que detestavam os livros e a escola, e depois de os carregar na carruagem levava-os para a Terra da Brincadeira, para ali passarem todo o tempo em jogos, folias e divertimentos. Depois, quando aqueles pobres rapazes iludidos, de tanto brincarem e nunca estudarem, se transformavam em burrinhos, ele, feliz e contente, apoderava-se deles e ia vendê-los pelas feiras e mercados. E assim, em poucos anos ganhara muito dinheiro e tornara-se milionário.
   O que aconteceu ao Palito, não sei; mas sei que Pinóquio, desde os primeiros dias, teve uma vida muito dura e de maus tratos.
   Quando o levou para o estábulo, o novo dono encheu-lhe a manjedoura de palha, mas Pinóquio provou-a e cuspiu-a logo.
   Então o dono, resmungando, encheu-lhe a manjedoura de feno, mas ele também não gostou.
   - Ah, também não gostas de feno? – gritou o dono, irritado. – Deixa estar, burrinho lindo, que se tu tens manias eu arranjo maneira de te as tirar.
   E como correctivo deu-lhe logo uma chicotada nas pernas.
   Com a dor, Pinóquio começou a chorar e a zurrar, e disse zurrando:
   - Ih-ó, ih-ó, não consigo digerir a palha.
   - Então come o feno – replicou o dono, que percebia muito bem a língua dos burros.
   - Ih-ó, ih-ó, o feno fazme dores de barriga.
   - Se calhar querias que eu alimentasse um burro como tu a peito de frango e de galinha em gelatina, não? – acrescentou o dono cada vez mais zangado e dando-lhe uma segunda chicotada.
   A esta segunda chicotada Pinóquio, por prudência, ficou quieto e nada disse.
   Entretanto o dono fechou o estábulo e Pinóquio ficou só, e como já não comia há muitas horas começou a bocejar de fome. E ao bocejar abria uma bocarra que parecia um forno.
   Por fim, como não encontrava mais nada na manjedoura, resignou-se a comer um pouco de feno; depois de o mastigado muito bem, fechou os olhos e engoliu-o.
   “Este feno não é mau – disse de si para si -, mas como teria sido melhor se eu tivesse continuado a estudar!... A esta hora, em vez de feno comeria um pedaço de pão fresco com uma bela fatia de fiambre. Paciência!...”
   - Paciência uma ova! – gritou o dono, que entrava nesse momento no estábulo. – Se calhar pensas, burrinho lindo, que eu te comprei só para ter dar de comer e de beber! Comprei-te para trabalhares e fazeres com que eu ganhe muito dinheiro. Portanto, toca a andar! Vem comigo para o circo, que lá te ensino a saltar ao arco, a furar os barris de folha com a cabeça e a dançar a valsa e a polca em pé nas patas traseiras.
   O pobre Pinóquio, a bem ou a mal, teve de aprender todas essas habilidares; mas para as aprender precisou de três meses de lições e muitas chicotadas de lhe arrancar o pelo.
   Chegou finalmente o dia em que o seu dono pôde anunciar um espectáculo realmente extraordinário. Os cartazes de várias cores, colados às esquinas das ruas, diziam assim:


GRANDE ESPECTÁCULO DE GALA
Para esta noite
TERÃO LUGAR OS SALTOS HABITUAIS
E EXERCÍCIOS SURPREENDENTES

executados por todos os artistas
e por todos os cavalos de ambas os sexos da companhia

e ainda:
SERÁ APRESENTADO PELA PRIMEIRA VEZ

o famoso
BURRINHO PINÓQUIO

também chamado
A ESTRELA DA DANÇA
_____________________________
O circo estará iluminado como se fosse dia
  
   Naquela noite, como podem imaginar, uma hora antes de começar o espectáculo o circo já estava à cunha.
   Já não havia um lugar na plateia, nem no balcão, nem um camarote, mesmo se pagos a peso de ouro.
    As bancadas do circo fervilhavam de meninos e meninas, de crianças de todas as idades que estavam impacientes com o desejo de verem dançar o famoso burrinho Pinóquio.
   Terminada a primeira parte do espectáculo, o director da companhia, vestido de casaca preta, calças brancas justas às pernas e botas altas de pele que lhe chegavam acima dos joelhos, apresentou-se perante o numeroso público e, depois de fazer uma grande vénia, com grande solenidade deu início a este discurso despropositado:
   “Respeitável público, cavalheiros e damas!”
   “O humilde abaixo-assinado, encontrando-se de passagem por esta ilustre metrópole, não quis deixar de dar a mim mesmo a honra, e também a prazer, de apresentar a este inteligente e distinto auditório um celebre burrinho que já teve a honra de dançar na presença de Sua Majestade o Imperador de todas as principais Cortes da Europa.”
   “E ao agradecer-lhes, ajudai-nos com a vossa animadora presença e com a vossa tolerância!”
   Este discurso foi acolhido com muitas gargalhardas e muitos aplausos; mas os aplausos redobraram e tornaram-se uma espécie de furacão quando o burrinho Pinóquio apareceu no meio do circo. Estava todo enfeitado, com ar festivo. Tinha um freio novo de pele lustrosa com fivelas e anilhas de latão, duas camélias brancas nas orelhas, a crina toda aos caracóis atados com lacinhos de seda vermelha, uma grande faixa dourada e prateada em redor da cintura, e a cauda toda entrançada com fitas de veludo vermelho e azul-claro. Em suma, era um encanto de burrinho!
   O director, ao apresenta-lo ao público, acrescentou ainda estas palavras:
   “Meus respeitáveis ouvintes! Não vim aqui para vos mentir sobre as grandes dificuldades por mim suportadas para compreender e domar este mamífero, enquanto ele pastava livremente de montanha em montanha nas planícies da zona tórrida. Observai, peço-vos, quanta selvajaria transpira dos seus olhos, pelo que, tendo-se revelado vãos todos os meios usados para o adaptar ao modo de viver dos quadrúpedes civilizados, tive de recorrer muitas vezes à linguagem amável do chicote. Mas todas as minhas gentilezas, em vez de fazerem com que ele me quisesse bem, só serviram para cativar a sua má disposição. Porém eu, seguindono método de Gall(3), encontrei no seu crânio uma pequena cartilagem óssea, que a própria Faculdade de Medecina de Paris reconheceu ser o bolbo renegerador dos cabelos e da dança pírrica(4). E foi por isso que decidi amestrá-lo não só para a dança como também para os respectivos saltos dos arcos e dos barris revestidos de folha. Admirai-o! E depois julgai-o! Antes porém de me desimpedir de vós, permiti, ó senhores, que eu vos convide para o espectáculo diurno de manhã à noite; mas, na apoteose de o tempo chuvoso ameaçar água, então o espectáculo, em vez de amanhã à noite, será adiado para amanhã de manhã, às onze horas da tarde.”
   E aqui o director fez mais uma profunda vénia, e depois, voltando-se para Pinóquio, disse-lhe:
   - Coragem, Pinóquio! Antes de dardes início aos vossos exercícios, saudai este respeitável público, cavalheiros, damas e meninos!
   Pinóquio, obediente, dobrou imediatamente os dois joelhos da frente até ao chão e ficou ajoelhado até que o director lhe gritou, fazendo estalar o chicote:
   - A passo!
   Então o burrinho ergueu-se nas quatro patas e começou a dar voltas em redor da pista, caminhando sempre a passo.
   Passado algum tempo o director gritou:
   - A trote! – e Pinóquio, obedecendo à ordem, mudou o passo para trote.
   - A galope! – e Pinóquio arrancou a galope.
   - Em corrida! – e Pinóquio começou a correr a bom correr.
   Mas quando ele já parecia um cavalo de corrida, o director ergueu o braço e disparou um tiro de pistola para o ar.
   Ao ouvir o tiro o burrinho, fingindo-se ferido, caiu estendido na pista como se estivesse realmente moribundo.
   Levantando-se do chão no meio de uma explosão de aplausos e gritos que subiram até às estrelas, ergueu naturalmente a cabeça e olhou para cima... e viu num camarote uma linda senhora que tinha ao pescoço um grande cordão de ouro, do qual pendia um medalhão. No medalhão estava pintado o retrato de um boneco.
   “Aquele retrato é meu!... aquela senhora é a Fada!” – pensou Pinóquio, reconhecendo-a logo; e deixando-se dominar pela grande alegria, tentou gritar:
   - Ó minha Fadazinha! Ó minha Fadazinha!
   Mas, em vez destas palavras, saiu-lhe da garganta um zurro tão sonoro e prolongado que fez rir todos os espectadores e, principalmente, todos os miúdos que estavam no circo.
   Então o director, para o ensinar e o fazer compreender que pôr-se a zurrar na cara do público é má educação, deu-lhe uma pancada no nariz com o cabo do chicote.
   O pobre burrinho, tirando para fora um palmo de língua, levou pelo menos cinco minutos a lamber o nariz, pensando talvez que assim eliminava a dor que sentira.
   Mas qual não foi o seu desespero quando, olhando outra vez para cima, viu que o camarote estava vazio e a Fada tinha desaparecido!...
   Sentiu-se quase a morrer; os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e começou a chorar copiosamente. Mas ninguém deu por isso e muito menos o director, o qual, fazendo estalar o chicote, gritou:
   - Vamos lá, Pinóquio! Agora vais mostrar a estes senhores com que graciosidade sabes saltar ao arco.
   Pinóquio tentou duas ou três vezes; mas quando chegava junto do arco, em vez de o travessar passava-lhe por baixo, que era mais fácil. Por fim deu um salto e atravessou-o, mas as pernas traseiras infelizmente ficaram presas no arco, e por isso caiu do outro lado feito num feixe.
   Quando se levantou estava coxo, e só a custo conseguiu regressar à estrebaria.
   - Tragam aqui o Pinóquio! Queremos o burrinho! Tragam cá o burrinho! Gritavam os miúdos da plateia, cheios de pena e comovidos com o triste acontecimento.
   Mas o burrinho naquela noite não voltou a aparecer.
   Na manhã seguinte o veterinário, ou seja, o médico dos animais, depois de o examinar declarou que ele ficaria coxo para toda a vida.
   Então o director disse ao moço de estrebaria:
   - O que queres que faça de um burro coxo? Seria alimentar um parasita. Por isso leva-o até à praça e vende-o.
   Chegados à praça encontraram logo um comprador, que perguntou ao moço de estrebaria:
   - Quanto queres por este burrinho coxo?
   - Vinte euros.
   - Dou-te dois euros. Não penses que o compro para o pôr a trabalhar; compro-o apenas pela pele. Já vi que tem a pele bem dura, e com ela quero fazer um tambor para a banda da minha terra.
   Imaginem, menino, qual foi a alegria que o pobre Pinóquio pôde sentir ao ouvir dizer que estava destinado a ser um tambor.
   Está claro que o comprador, assim que pagou os dois euros, levou o burrinho para a falésia junto ao mar; pendurou-lhe uma pedra ao pecoço, amarrou-o por uma pata com uma corda que segurava na mão e, de repente, deu-lhe um empurrão atirando-o para a água.
   Com aquele pedregulho ao pescoço, Pinóquio foi logo para o fundo; e o comprador, segurando sempre a corda com firmeza sentou-se numa rocha à espera que o burrinho tivesse tempo de morrer afogado, para depois lhe tirar a pele.

(3) Franz Joseph Gall (1758-1828): médico e anatomista alemão, pai da frenologia e precursor da teoria das localizações. (nota do tradutor)
(4) Dança pírrica: dança guerreira praticada na Grécia desde a infância, para exercitar os soldados. (nota do tradutor)

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia). Se detectarem algum erro ou gralha, agradecemos que nos enviem um mail a alertar.

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