quarta-feira, 17 de junho de 2020

PINÓQUIO # 34 - Capitulo XXXIV de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XXXIV

Cinquenta minutos depois de o burrinho estar debaixo de água, o comprador disse, falando sozinho:
   - A esta hora o meu pobre burrinho coxo já deve estar bem afogado. Toca a puxá-lo para cima, para fazer um belo tambor com a sua pele.
   E começou a puxar a corda que lhe tinha atado a uma perna; puxou, puxou, puxou, até que viu aparecer à tona da água... adivinhem o quê? Em vez de um burrinho morto, viu aparecer à tona de água um boneco vivo que se contorcia como uma enguia.
   Ao ver aquele boneco de madeira, o pobre homem pensou que estava a sonhar e ficou meio apalermado, de boca aberta e olhos esbugalhados.
   Recuperando um pouco do espanto inicial, disse a chorar e a soluçar:
   - E o burrinho que atirei ao mar, onde está?
   - O burrinho sou eu – respondeu o boneco, a rir.
   - Tu?
   - Eu.
   - Ah, mariola! Pensas que me enganas?
   - Enganá-lo? Pelo contrário, meu caro dono, estou a falar a sério.
   - Mas como é que tu ainda há pouco eras um burrinho e agora, dentro de água, te transformaste num boneco de madeira?
   - Deve ser éfeito da água do mar. O mar tem destas brincadeiras.
   - Toma cuidado, boneco!... Não penses que te divertes à minha custa. Ai de ti se eu perco a paciência!
   - Está bem, dono; quer saber a história toda? Então solte-me esta perna que eu conto-lha.
   O bonacheirão do comprador, curioso de conhecer toda a história, desatou logo o nó da corda que o amarrava; e então Pinóquio, sentindo-se livre como um passarinho, começou a contar.
   - Pois então fique sabendo que eu era um boneco de madeira como sou agora, mas estava mais coisa menos coisa para me transformar num rapaz como há tantos por aí; só que, por causa da minha pouca vontade de estudar e por dar ouvidos às más companhias, fugi de casa... e um belo dia, ao acordar, tinha-me tornado um burro com umas grandes orelhas... e uma grande cauda. Que vergonha que eu tive!... Uma vergonha, meu dono, que peço ao bendito Santo António que nunca o deixe passar por ela! Foram-me vender ao mercado dos burros e fui comprado pelo director de uma companhia equestre, que meteu na cabeça que havia de fazer de mim um grande bailarino e um grande saltador de arcos; mas uma noite, durante o espectáculo, dei um grande trambolhão na pista e fiquei coxo das duas pernas. Então o director, não sabendo o que fazer de um burro coxo, mandou-me vender e você comprou-me.
   - Para meu azar! E paguei dois euros por ti. E agora que é que me devolve os meus ricos dois euros?
   - E para que é que me comprou? Comprou-me para fazer com a minha pele um tambor!... um tambor!...
   - Que azra o meu! Agora, onde é que vou arranjar outra pele?...
   - Não desespere, meu dono. Burrinhos é o que há mais neste mundo!
   - Diz-me cá, gaiato impertinente: e a tua história acaba aqui?
   - Não – respondeu o boneco. – Só mais duas palavras e depois acaba. Depois de me ter comprado, trouxe-me a este lugar para me matar; porém, cedendo a um sentimento piedoso de humanidade, preferiu atar-me uma pedra ao pescoço e atirar-me para o fundo do mar. Este sentimento de dilicadeza muito o honra, e eu ser-lhe-ei eternamente reconhecido. No entanto, meu caro dono, fez os seus planos sem contar com a Fada.
   - Quem é essa Fada?
   - É a minha mãe, e parece-se com todas as outras boas mães que amam muito os seus filhos e os têm sempre debaixo de olho e os assistem amorosamente em todas as desgraças, mesmo quando os filhos, pelas suas leviandades e mau comportamento, mereciam que elas os abandonassem e os deixassem entregues a si mesmo. Ora dizia eu que a boa Fada, assim que viu que eu estava em perigo de me afogar, mandou logo junto de mim um enorme cardume de peixes, os quais, pensando que eu era de facto um burrinho morto, me começaram a comer. E que grandes dentadas que davam! Nunca pensei que os peixes fossem ainda mais glutões do que os miúdos... Um comia-me as orelhas, outro o focinho, outro o pescoço e a crina, outro ainda a pele das patas e um outro a pele do lombo;... e havia entre eles um peixinho tão amável que até se dignou comer-me a cauda.
   - De hoje em diante – disse o comprador, horrorizado -, juro que nunca mais como peixe. Seria muito desagradável abrir um salmonete ou um badejo e encontrar lá dentro uma cauda de burro.
   - Eu penso o mesmo – retorquiu o boneco, a rir. – Além disso, devo dizer-lhe que quando os peixes acabaram de comer toda aquela capa de asno que me cobria da cabeça aos pés, chegaram, como é natural, ao osso... ou melhor dizendo, chegaram à madeira; pois como pode ver, eu sou todo feito de madeira bem dura. Mas depois de darem as primeiras dentadas, aqueles peixes glutões perceberam logo que a madeira não era carne para os seus dentes e, enjoados com esta comida indigesta, foram-se embora, uns para aqui, outros para ali, sem sequer se voltarem para me agradecer. E agora já sabe porque é que, quando puxou a corda, lhe apareceu um boneco vivo em vez de um burrinho morto.
   - Eu estou-me nas tintas para a tua história – gritou o comprador, furioso. – O que sei é que gastei dois euros para te comprar, e quero-os de volta. Sabes o que faço? Levo-te outra vez ao mercado e vendo-te ao peço da lenha bem seca, para acender o lume na lareira.
   - Então, venda-me! Por mim, até fico contente! – disse Pinóquio.
   Mas ao dizer isto, deu um grande slato e caiu na água. E nadando alegremente, ia-se afastando da praia e gritava ao infeliz comprador:
   - Adeus, meu dono! Se precisar de uma pele para fazer um tambor, lembre-se de mim.
   O que é certo é que num abrir e fechar de olhos já se afastara tanto que quase não se via; isto é, à superfície via-se só um pontinho negro que de vez em quando esticava as pernas para fora de água, e dava saltos e cambalhotas como um golfinho bem-disposto.
   Enquanto Pinóquio nada ao acaso, viu no meio do mar um rochedo que parecia de mármore branco; e no cimo do rochedo uma linda Cabrinha, que balia amorosamente e lhe fazia sinal para se aproximar.
   O mais estranho era que o pêlo da Cabrinha, em vez de ser branco ou preto ou malhado, como o das outras cabras, era azul-turquesa, mas de um azul-turquesa resplandescente que muito fazia lembrar os cabelos da linda Menina.
   Como podem calcular, o coração do pobre Pinóquio começou a bater com mais força. Redobrando de vigor e de energia, começou a nadar na direcção do rochedo branco; e já ia a meio caminho quando surgiu da água, vindo ao seu encontro, uma horrível cabeça de monstro marinho, de boca escancarada como um abismo e três fileiras de dentes que meteriam medo só de vê-los pintados.
   Sabem que era aquele monstro marinho?
   Aquele monstro marinho era, nem mais nem menos, o gigantesco Tubarão várias vezes mencionado nesta história, o qual, por causa das chacinas que fazia e pela sua avidez insaciável, tinha a alcunha de “o Átila dos peixes e pescadores”.
   Imaginem o susto que Pinóquio apanhou quando viu o monstro. Tentou esquivar-se-lhe, mudar de direcção, fugir; mas aquela enorme boca escancarada vinha sempre direita a ele à velocidade de uma seta.
   - Mais depressa, Pinóquio, por favor! – gritava a linda Cabrinha, balindo.
   E Pinóquio nadava desesperadamente, com os braços, com o peito, com as pernas e com os pés.
   - Corre, Pinóquio, que o monstro já está perto!
   E Pinóquio, reunindo todas as suas forças, redobrava de energia na corrida.
   - Atenção, Pinóquio!... o monstro vai-te apanhar!... Aí vem ele!... aí vem ele! Mais depressa, por favor, senão estás perdido!
   E Pinóquio nadava mais depressa do que nunca, veloz como uma bala. E já estava perto do rochedo, e a Cabrinha, debruçando-se toda para o mar, já lhe estendia as patinhas da frente para o ajudar a sair da água...
   Mas já era tarde! O monstro tinha-o apanhado: ao inspirar, sorveu o pobre boneco como quem sorve um ovo de galinha; engoliu-o com tanta violência e tanta avidez que Pinóquio, ao cair na barriga do Tubarão, deu uma pancada tão forte que ficou atormentado durante um quarto de hora.
   Quando recuperou daquele susto, não conseguia perceber em que mundo se encontrava. À sua volta estava tudo escuro; mas era uma escuridão tão negra e profunda, que tinha uma impressão de ter metido a cabeça num tinteiro cheio de tinta. Pôs-se à escuta, e não ouviu ruído nenhum; tudo o que tinha sentido era bater-lhe no rosto, de vez em quando, uma grande lufada de vento, mas depois percebeu que saía dos pulmões do monstro. Porque é preciso que se diga que o Tubarão sofria muito de asma, e quando respirava parecia mesmo que soprava o vento norte.
   Pinóquio nos primeiros instantes conseguiu ter alguma coragem; mas quando teve a prova e a confirmação de que se encontrava preso dentro do corpo do monstro marinho, então começou a chorar e a berrar e dizia entre soluços:
   - Socorro! Socorro! Pobre de mim! Não há ninguémque me venha salvar?
   - Quem esperar tu que te salve, desgraçado? – disse naquela escuridãp um vozeirão cavernoso de guitarra desafinada.
   - Quem foi que disse isso? Perguntou Pinóquio, sentindo-se gelar de pavor.
   - Fui eu. Sou um pobre Atum engolido pelo Tubarão juntamente contigo. E tu que peixe és?
   - Eu não tenho dada a ver com peixes. Eu sou um boneco.
   - Então se não és um peixe, porque é que te deixaste engolir pelo monstro?
   - Não fui eu que me deixei engolir: ele é que me engoliu! E agora o que havemos de fazer aqui no escuro?
   - Resignarmo-nos e esperar que o Tubarão nos digira aos dois.
   - Mas eu não quero ser digerido! – gritou Pinóquio, recomeçando a chorar.
   - Também eu preferia não ser digerido! – replicou o Atum -, mas sou bastante filósofo e consola-me pensar que, quando se nasce atum, é mais digno morrer na água do que no azeite.
   - Disparates! – gritou Pinóquio.
   - Esta é a minha opinião – acrescentou o Atum -, e as opiniões, como dizemos atuns políticos, devem ser respeitadas.
   - Enfim, o que eu quero é sair daqui... quero fugir.
   - Foge, se fores capaz.
   - É muito grande, este Tubarão que nos engoliu? – perguntou o boneco.
   - Imagina que o corpo dele tem mais de um quilómetro, sem contar com a cauda.
   Enquanto assim conversavamna escuridão, Pinóquio teve a impressão de ver muito, muito longe, uma espécie de clarão.
   - O que será aquela luzinha lá muito ao longe? – disse ele.
   - Talvez seja algum nosso companheiro de desventura, que espera como nós o momento de ser digerido.
   - Vou ter com ele. Não podia dar-se o caso de ser algum velho peixe capaz de ensinar o caminho para fugir?
   - Desejo-te de todo o coração, meu caro boneco.
   - Adeus, Atum.
   - Adeus, boneco, e boa sorte.
   - Onde voltaremos a ver-nos?
   - Sabe-se lá!... É melhor nem pensar nisso.

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia). Se detectarem algum erro ou gralha, agradecemos que nos enviem um mail a alertar.

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