sexta-feira, 5 de junho de 2020

PINÓQUIO # 29 - Capitulo XV de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XXIX

Regressa a casa da Fada, que lhe promete que no dia seguinte deixará de ser um boneco e passará s ser rapaz. Pequeno-almoço especial de café com leite para estejar esse grande acontecimento.

   Quando o pescador estava pronto para atirar Pinóquio para a frigideira, entrou na gruta um cão enorme que foi atraído pelo cheiro forte e apetitoso a peixe frito.
    - Fora daqui! – gritou o pescador ameaçando-o enquanto segurava na mão o boneco enfarinhado.
   Mas o pobre cão tinha fome que chegava para quatro e, ganindo e abanando a cauda, parecia que queria dizer:
    - Dá-me um bocado de peixe frito que eu deixo-te em paz.
    - Fora daqui, já te disse! – repetiu o pescador; e esticou a perna para lhe dar um pontapé.
   Então o cão, que quando tinha fome deveras não costumava deixar que lhe levassem a melhor, voltou-se para o pescador a rosnar, mostrando-lhe as suas terríveis presas.
    Naquele instante ouviu-se na gruta uma vozinha muito fraca, que disse:
    - Salva-me, Flecha! Se não me salvares, estou frito!
   O cão reconheceu logo a voz de Pinóquio e percebeu, com enorme espanto, que a vozinha saíra daquela trouxa enfarinhada que o pescador tinha na mão.
  Então, o que faz ele? Dá um grande salto, agarra com a boca aquela trouxa enfarinhada e, segurando-a delicadamente com os dentes, sai a correr da gruta veloz como um raio.
    O pescador, furioso por ver que lhe arrancaram da mão um peixe que ele ia comer com tanto gosto, tentou perseguir o cão; mas tinha dado apenas alguns passos quando lhe veio um ataque de tosse e teve de voltar para trás.
  Entretanto Flecha, tendo encontrado o atalho que seguia até ao povoado, parou e pousou delicadamente no chão o amigo Pinóquio.
    - Como te estou agradecido! – disse o boneco.
    - Não é preciso agradecer – replicou o cão. – Tu salvaste-me, e todas as acções têm a sua paga. Já se sabe: neste mundo temos de nos ajudar uns aos outros.
    - Mas como é que foste parar àquela gruta?
   - Ainda estava aqui estendido na praia mais morto que vivo, quando o vento me trouxe de longe um cheirinho a peixe frito. Aquele cheirinho abrui-me o apetite e eu fui atrás dele. Se tenho chegado um minuto mais tarde...
  - Não me digas isso! – gritou Pinóquio, que ainda tremia de medo. – Não me digas isso! Se tu chegasses um minuto mais tarde, a esta hora eu já tinha sido frito, comido e digerido. Brrr... arrepio-me todo só de pensar nisso!
  Flecha, rindo, estendeu a pata direita ao boneco, que lha apertou com força em sinal de grande amizade; e depois aepararam-se.
  O cão retomou o caminho de casa e Pinóquio, ficando só, dirigiu-se a uma cabana pouco distante dali e perguntou a um velhote que estava à porta a aquecer-se ao sol:
  - Diga-me, cavalheiro, sabe alguma coisa de um pobre rapaz ferido na cabeça e que se chamava Eugénio?
   - Esse rapaz foi trazido para esta cabana por uns pecadores, e agora...
   - Agora já terá morrido!... – interrompeu Pinóquio, amargurado.
   - Não, está vivo e já voltou para casa.
  - A sério? A sério? – gritou o boneco, dando saltos de alegria. – Quer dizer que a ferida não era grave?
  - Mas podia ter sido muito grave e até mortal – respondeu o velhote -, pois atiranram-lhe à cabeça um livro grande encadernado em cartão.
  - E quem foi que lho atirou?
  - Um companheiro de escola, um tal Pinóquio.
  - E quem esse Pinóquio? – perguntou o boneco, fazendo-se de néscio.
  - Dizem que é um mariola, um vadio, um verdadeiro irresponsável.
  - Calúnias, são tudo calúnias!
  - Conheces esse Pinóquio?
  - De vista – respondeu o boneco.
  - E o que pensas dele? – perguntou-lhe o velhote.
  - A mim parece-me um rapaz às direitas, cheio de vontade de estudar, obediente, afeiçoado ao pai e à família...
  Enquanto desfiava descaradamente aquele chorrilho de mentiras, Pinóquio tocou no nariz e sentiu que ele tinha crescido mais de um palmo. Então começou a gritar, cheio de medo:
  - Não faça caso, cavalheiro, de tudo o que eu lhe disse em anono dele. Conheço muito bem Pinóquio e posso confirmar-lhe que ele é mesmo um mariola, um desobediente e um preguiçoso que em vez de ir à escola vai fazer travessuras com os companheiros.
  Assim que pronunciou estas palavras o nariz encolheu e voltou ao tamanho normal. Como era antes.
  - E porque é que tu estãs todo branco dessa maneira? – perguntou-lhe de repente o velhote.
  - Já lhe conto... sem dar por isso, esfreguei-me numa parede que estava caiada de fresco – respondeu o boneco, com vergonha de confessar que o tinham enfarinhado como se fosse um peixe para em seguida o fritarem na frigideira.
  - E o que foi feiro do teu casaco, das tuas calças e do teu chapéu?
  - Encontrei-me com uns ladrões que me roubaram tudo, Diga-me, bom velho, não teria por acaso por acaso alguma coisinha de vestir que me desse para eu poder voltar a casa?
  - Meu rapaz, no que respeita a roupa, tudo o que tenho é um saquinho onde guardo os tremoços. Se o queres, leva-o; está além.
  E Pinóquio não o deixou dizer duas vezes: pegou logo no saco dos tramoços, que estava vazio, e depois de lhe fazer com a tesoura um buraco no fundo e dois buracos dos lados, enfiou-o como se fosse uma camisola. E assim vestido com uma roupa tão leve, pôs-se a caminho do povoado.
  Mas pelo caminho não se sentia nada tranquilo; dava um passo à frente e outro atrás e, falando sozinho, ia dizendo:
  - Como é que me vou apresentar diante da minha Fadazinha? O que dirá ela quando me vir?... Será que me perdoa esta travessura?... Aposto que não me perdoa! Oh não, não me perdoa de certeza! E é bem feito, porque eu sou um malandro que promete sempre emendar-me e nunca cumpro.
  Era já noite escura quando chegou ao povoado e, como estava mau tempo e chovia a cântaros, foi direitinho à casa da Fada com o firme propósito de bater à porta até ela abrir.
  Mas quando lá chegou sentiu que lhe faltava a coragem e, em vez de bater, afastou-se uns vinte passos a correr. Depois aproximou-se da porta pela segunda vez e não foi capaz; voltou a aproximar-se pela terceira vez, e nada; à quarta vez agarrou na aldraba de ferro com a mão a tremer e bateu muito levemente.
   Esperou, esperou, e por fim, meia hora depois abriu-se uma janela do último andar (a casa tinha quatro pisos) e Pinóquio viu assomar uma grande Caracoleta que tinha uma luzinha acesa na cabeça e que disse:
   - Quem é, a uma hora destas?
   - A Fada está em casa? – perguntou o boneco.
   - A Fada está a dormir e não quer que a acordem; mas quem éstu?
   - Sou eu.
   - Eu, quem?
   - O Pinóquio.
   - Que Pinóquio?
   - O boneco, aquele que mora nesta cas com a Fada.
   - Ah, já sei – disse a Caracoleta. – Espera aí que eu vou descer e abro já.
   - Mas despacha-te, por caridade, que eu estou a morrer de frio.
   - Ouve, rapaz, eu sou uma caracoleta, e as caracoletas nunca têm pressa.
  Passou uma hora, passaram duas, e a porta não se abria; por isso Pinóquio, que tremia de frio e de medo e porque estava todo encharcado, ganhou coragem e bateu segunda vez, e desta vez com mais força.
  Em resposta a esta segunda pancada abriu-se uma janela do andar de baixo e assomou-se a mesma Caracoleta.
  - Caracoletazinha linda – gritou-lhe Pinóquio da rua -, há duas horas que estou à espera! E duas horas com uma noite destas são mais compridas do que dois anos. Despacha-te, por piedade.
  - Ouve, rapaz – respondeu-lhe da janela aquele bicharoco que era todo paz e bonacheirice. – Ouve, rapaz, eu sou uma caracoleta, e as caracoletas nunca têm pressa.
  E a janela fechou-se.
  Daí a pouco soou a meia-noite, depois a uma e depois as duas da madrugada, e a porta continuava fechada.
  Então Pinóquio, perdendo a paciência, agarrou com raiva a aldraba da porta para dar uma pancada que retumbasse por toda a casa; mas a aldraba, que era de ferro, transformou-se de repente numa enguia viva que, esgueirando-se-lhe das mãos, desapareceu na regueira de água que corria pela rua.
  - Ah, sim? – gritou Pinóquio, cada vez mais cego de cólera. – Se a aldraba desapareceu, continuo a bater à porta aos pontapés.
  E recuando um pouco, deu um valentíssimo pontapé na porta da casa. A pancada foi tão forte, que o pé penetrou na madeira até meio; e quando o boneco tentou tirá-lo, todo o esforço foi em vão, porque o pé tinha ficado espetado na madeira como se fosse um prego de rebite.
Imaginem o infeliz Pinóquio! Teve de passar o resto da noite com o pé no chão e o outro no ar.
  De manhã ao nascer do dia a porta finalmente abriu-se. Aquele bicharoco veloz que era a Caracoleta demorara apenas nove horas a descer do quarto andar até à porta de entrada. Temos de reconhecer que apanhou uma boa estafa!
  - O que fazes aí com o pé espetado na porta? – perguntou ao boneco a rir.
  - Aconteceu uma desgraça. Minha querida caracoleta, vê lá se consegues livrar-me deste suplício.
  - Meu rapaz, isto é coisa para um carpinteiro, e eu carpinteiro nunca fui.
  - Pede à Fada por mim...
  - A Fada está a dormir e não quer que a acordem.
  - Mas o que queres que eu faça todo o dia pregado a esta porta?
  - Entretém-te a contar as formigas que passam pela rua.
  - Pelo menos traz-me alguma coisa de comer, pois estou esgotado.
  - É para já! – disse a Caracoleta.
  De facto, passado três horas e meia Pinóquio viu-a regressar com uma bandeja de prata á cabeça. Na bandeja havia pão, um frango assado e quatro alperces maduros.
  - Aqui está o pequeno-almoço que te manda a Fada – disse a Caracoleta.
  À vista daquela benção de Deus, o boneco sentiu-se todo consolado. Mas qual não foi a sua desilusão quando ia começar a comer e viu que o pão era gesso, o frango de cartão e os quatro alperces de alabastro, na sua cor natural.
   Só tinha vontade de chorar, de se entregar ao desespero, de deitar fora a bandeja com tudo o que tinha dentro; mas em vez disso, ou fosse pelo seu grande sofrimento oi pela fraqueza de estômago, o que é certo é que caiu e desmaiou.
   Quando voltou a si encontrou-se estendido num sofá, e a seu lado estava a Fada.
   - Também desta vez te perdoo – disse-lhe a Fada -, mas ia de ti se me fazes outra das tuas!
Pinóquio prometeu e jurou que iria estudar e que se portaria sempre bem. Manteve a sua palavra durante o resto do ano. De facto, nos exames finais teve a honra de ser o melhor aluno da escola; e o seu comportamento, de maneira geral, foi considerado tão louvável e satisfatório que a Fada, toda contente, lhe disse:
   - Amanhã, finalmente, o teu desejo será umprido.
   - O que queres dizer?
   - Amanhã deixarás de ser um boneco de madeira e passarás a ser um rapaz a sério.
  Quem não presenciou a alegria de Pinóquio ao ouvir esta notícia tão suspirada nunca poderá imaginá-la. Todos os seus amigos e companheiros de escola iam ser convidados para um pequeno-almoço especial em casa da Fada no dia seguinte, para que festejassem juntos o grande acontecimento; e a Fada já mandara preparar duzentas chávenas de café com leite e quatrocentos pãezinhos com manteiga dos dois lados. Aquele dia prometia ser muito bonito e muito alegre, mas...
Infelizmente, na vida dos bonecos há sempre um mas que estraga tudo.

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia). Se detectarem algum erro ou gralha, agradecemos que nos enviem um mail a alertar.

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