quinta-feira, 4 de junho de 2020

PINÓQUIO # 28 - Capitulo XV de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XXVIII

Pinóqui corre perigo de ser frito na frigideira como um peixe.

    Durante aquela corrida desesperada houve um momento terrível, um momento em que Pinóquio julgou que estava perdido, visto que o Flecha (assim se chamava o pastor alemão), à força de tanto correr, já quase o tinha alcançado.
    Basta dizer que o boneco ouviu atrás de si, à distância de um palmo, o arfar ofegante do animal, e até sentia o bafo quente da sua respiração.
    Por sorte a praia já estava próxima e via-se o mar ali a poucos passos.
    Assim que chegou à praia Pinóquio deu um enorme salto, como só uma rã seria capaz de fazer, e foi cair no meio da água. Flecha, por sua vez, queria parar; mas, levado pelo ímpeto da corrida, também ele entrou na água. Aconteceu que o desgraçado não sabia nadar, e por isso começou a bater com as patas para se manter à tona; porém, quanto mais esperneava mais a cabeça lhe ficava debaixo de água.
   Quando voltou a pôr a cabeça de fora, o pobre cão tinha os olhos aterrorizados e desvairados, e gritava ladrando:
    - Estou-me a afogar! Estou-me a afogar!
    - Morre para aí! – respondeu-lhe Pinóquio de longe, sentindo-se já a salvo de todos os perigos.
    - Acode-me, amigo Pinóquio!... salva-me da morte!...
    Ao ouvir aqueles gritos lancinantes, o boneco, que no fundo tinha um excelente coração, foi tocado pela compaixão e, voltando-se para o cão, disse:
    - Mas se eu te ajudar a salvares-te, prometes que me deixas em paz e que não corres atrás de mim?
    - Prometo-te! Prometo-te, sim! Mas despacha-te, por caridade, porque se demoras mais minuto sou um cão morto.
    Pinóquio hesitou um pouco; mas depois, lembrando-se de que o pai tantas vezes lhe dissera que se fizermos uma boa acção nunca ficamos a perder, nadou na direcção de Flecha e, agarrando-o pela cauda com as duas mãos, levou-o são e salvo até à areia seca da praia.
    O pobre cão já não se segurava em pé. Tinha bebido tanta salgada sem querer, que estava inchado como uma bola. Por sua vez o boneco, não querendo fiar-se demais, achou prudente atirar-se outra vez ao mar e, afastando-se da praia, gritou ao amigo que salvara:
     - Adeus, Flecha; faz boa viagem e dá cumprimentos lá em casa.
    - Adeus, Pinóquio – respondeu o cão. – Muito obrigado por me teres salvo da morte. Fizeste-me um grande favor, e neste mundo todas as acções têm a sua recompensa. Se a oportunidade surgir, conta comigo.
   Pinóquio continuou a nadar, mantendo-se sempre perto de terra. Por fim, pareceu-lhe que tinha chegado a um lugar seguro e, dando uma olhadela á praia, viu sobre as rochas uma espécie de gruta de onde saía uma longa coluna de fumo.
   - Naquela gruta – disse de si para si – deve haver fogo. Tanto melhor! Poderei enxugar-me e aquecer-me, e depois... E depois o que for será.
    Tomando essa decisão. Aproximou-se dos rochedos; mas, quando estava para começar a trepá-los, sentiu qualquer coisa debaixo de água que subia, subia, subia e o levantava no ar. Tentou logo fugir mas já era tarde, pois para seu enorme espanto viu-se encerrado numa grande rede, no meio de um fervilhar de peixes de todos os tamanhos e feitios, que abanavam as caudas e se debatiam como almas desesperadas.
    Ao mesmo tempo viu sair da gruta um pescador tão feio, mas mesmo tão feio, que parecia um monstro marinho. Em vez de cabelos tinha na cabeça uma moita compacta de erva verde, a pele de todo o corpo era também verde, e verdes eram os olhos e a longa barba que lhe descia até à barriga. Parecia um enorme lagarto em pé sobre as patas traseiras.
     Quando o pescador tirou a rede do mar, gritou todo contente:
     - Abençoada providência! Também hoje vou poder empantorrar-me de peixe.
     “Ainda bem que eu não sou peixe!” – pensou Pinóquio, ganhando um pouco de coragem.
     A rede cheia de peixes foi levada para dentro da gruta, que era escura e cheia de fumo, e no meio da qual havia uma grande frigideira com azeite a ferver que deitava um cheirete a ranço de cortar a respiração.
    - Ora vamos lá ver que peixes é que apanhámos – disse o pescador verde; e, introduzindo na rede uma manápula tão desproporcionada que até parecia uma pá de padeiro, tirou para fora uma mão-cheia de salmonetes.
    - Que bons, estes salmonetes! – disse, olhando-os e cheirando-os com satisfação. E depois de os ter cheirado atirou-os para o alguidar sem água.
   Repetiu várias vezes a mesma operação e, à medida que tirava os outros peixes para fora, sentia crescer-lhe água na boca e dizia com regozijo:
   - Que bons, estes badejos!
   - Deliciosas, estas tainhas!
   - Que saborosos, estes linguados!
   - Que gostosos, estes besugos!
   - Engraçadas, estas anchovas com cabeça!
   Como podem imaginar, os badejos, as tainhas, os liguados, os besugos e as anchovas foram todos a granel para dentro do alguidar, fazer companhia aos salmonetes.
   O último a ficar na rede foi Pinóquio.
   Assim que o tirou para fora, o pescador esbugalhou os olhaos verdes com espanto, gritando quase assustado:
   - Que raça de peixe é esta? Não me lembro de alguma vez ter comido peixes deste feitio.
Olhou-o outra vez com muita atenção e, depois de o ter observado bem por todos os lados, por fim disse:
   - Já percebi: deve ser um carangueijo do mar.
   Então Pinóquio, ressentido por ouvir que o confundiam com um caragueijo, disse em tom ofendido:
   - Qual carangueijo, qual quê! Veja lá como me trata! Eu, para sua informação, sou um boneco.
  - Um boneco? – replicou o pescador. – Para ser sincero, o peixe-boneco para mim é novidade. Melhor assim! Como-te ainda com mais gosto.
   - Comer-me? Mas não está a perceber que eu não sou um peixe? Ou não vê que eu falo e raciocino como você?
   - É bem verdade – acrescentou o pescador. – E por ver que és um peixe que tem a sorte de falar e raciocinar como eu, quero tratar-te com o devido respeito.
   - E esse respeito seria?...
  - Em sinal de amizade e de especial consideração, dou-te a escolher o modo como queres ser cozinhado. Desejas ser frito na frigideira, ou preferes seres estufado no tacho com molho de tomate?
   - Para dizer a verdade – respondeu Pinóquio -, se sou eu a escolher prefiro ficar em liberdade para voltar para a minha casa.
   - Estás a brincar! Achas que eu estou disposto a perder a oportunidade de provar um peixe tão raro? Não é todos os dias que aparece um peixe-boneco aqui neste mares. Deixa isso comigo: vou-te fritar na frigideira juntamente com todos os outros peixes, e assim vais ficar satisfeito. Ser frito acompanhado é sempre uma consolação.
Ao ouvir este discurso, o infeliz Pinóquio começou a chorar, a berrar, a implorar; e dizia entre soluços:
   - Como teria feito melhor se tivesse ido para a escola!... Dei ouvidos aos meus companheiros e agora pago as favas. Ih! Ih! Ih!...
   E como se contorcia como uma enguia e fazia esforços incríveis para se esgueirar das garras do pescador verde, este agarrou numa haste de junco e, depois de lhe ter amarrado as mãos e pés como se fosse um salame, atirou-o para o fundo do alguidar onde estavam os outros.
   Em seguida pegou num tabuleiro de madeira cheio de farinha e começou a enfarinhar os peixes todos: e à medida que os ia enfarinhando punha-os a fritar na frigideira.
   Os primeiros a dançar no azeite a ferver foram os pobres badejos; a seguir foi a vez dos besugos, depois a das tainhas, depois a dos linguados e anchovas, e depois chegou a vez de Pinóquio, o qual, vendo a morte tão próxima (e que morte horrível!), tremia tanto e estava tão aterrorizado que já não tinha voz nem fôlego para implorar.
   O pobre garoto suplicava com os olhos! Mas o pescador verde, sem fazer caso, envolveu-o em farinha cinco ou seis vezes, enfarinhando-o tão bem da cabeça aos pés que ele parecia ter-se transformado num boneco de gesso.
    Em seguida agarrou-o pela cabeça, e...

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia). Se detectarem algum erro ou gralha, agradecemos que nos enviem um mail a alertar.

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