sexta-feira, 29 de maio de 2020

PINÓQUIO # 24 - Capitulo XXIV de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XXIV

Pinóquio chega à ilha das abelhas laborosas e reencontra a Fada.

    Pinóquio, animado pela esperança de chegar a tempo de socorrer o seu pobre pai, nadou durante toda a noite.
   E que noite horrível aquela! Choveu a cântaros, saraivou, trovejou assustadoramente e fez uns relâmpagos tais que até parecia ser dia.
    Ao amanhecer, conseguiu ver a pouca distância uma longa faixa de terra. Era uma ilha no meio do mar.
    Esforçou-se para alcançar a praia, mas em vão. As ondas, sucedendo-se e sobrepondo-se, faziam-no andar de um lado para o outro como se fosse uma folha ou um fio de palha. Por fim, e para sua grande sorte, veio uma onda tão forte e impetuosa que o atirou em peso para a areia da praia.
    A pancada foi tão violenta que, ao bater no chão, lhe estalaram todas as costelas e articulações; mas logo se consolou, dizendo:
     - Mais uma vez escapei de boa!
    Entretanto, pouco a pouco o céu foi srenando, o sol apareceu em todo o seu esplendor e o mar ficou calmo e liso como um espelho.
     Então, Pinóquio estendeu a roupa ao sol para enxugar e pôs-se a olhar para todos os lados, a ver se conseguia descobrir naquela imensa extensão de água um barquinho pequenino com um homenzinho dentro. Mas depois de ter olhado muito bem, não viu mais nada diante de si a não ser céu, mar e algumas velas de navios, mas tão distantes que mais pareciam moscas.
    - Se eu ao menos soubesse como se chama esta ilha! – ia dizendo. – Se eu ao menos soubesse se esta ilha é habitada por gente boa, quer dizer, gente que não tenha o vício de pendurar os miúdos nos ramos das árvores! Mas a quem é que posso perguntar? A quem, se não há aqui ninguém?
    A ideia de que se encontrava completamente só no meio daquela grande terra desabitada provocou-lhe tanta tristeza, que estava quase a começar a chorar; mas de repente viu passar, a pouca distância da margem, um grande peixe que ia tranquilamente á sua vida com a cabeça toda fora de água.
    Como não sabia o nome dele para o chamar, gritou-lhe em voz alta para se fazer ouvir:
    - Ó senhor peixe, permite-me que lhe dê uma palavrinha?
    - Até duas – respondeu o peixe, que era um Golfinho tão simpático como se encontram poucos em todos os mares do mundo.
   - Fazia o favor de me dizer se nesta ilha há povoações onde se possa comer, sem o perigo de sermos comidos?
   - Tenho a certeza que sim – respondeu o Golfinho. – Aliás, encontrarás uma a pouca distância daqui.
    - E qual é o caminho para lá?
   - Segues por esse atalho aí à esquerda e vais sempre na direcção do teu nariz. Não há nada que enganar.
    - Diga-me outra coisa. O senhor que passeia pelo mar todo o dia e toda a noite, não teria por acaso ancontrado um barquinho pequeno com o meu pai lá dentro?
    - E quem é o teu pai?
    - É o melhor pai do mundo, assim como eu sou o filho pior que pode haver.
    - Com o temporal que fez esta noite – respondeu o Golfinho -, o barquito deve-se ter afundado.
    - E o meu pai?
   - A esta hora já deve ter sido engolido pelo terrível Tubarão que desde há alguns dias espalha o extermínio e a desolação nas nossas águas.
    - É muito garnde, esse Tubarão? – perguntou Pinóquio, que já começava a tremer de medo.
    - Se é grande!... – respondeu o Golfinho. – Para que possas fazer uma ideia, só te digo que é maior do que um prédio de cinco andares, e tem uma bocarra tão larga e tão funda que por ela passava à vontade um comboio inteiro com a locomotiva a fumegar.
   - Minha mãe! – gritou Pinóquio, assustado; e vestindo-se à pressa, virou-se para o Golfinho e disse-lhe: - Até à vista, senhor peixe; desculpe o incómodo e muito agradecido pela sua amabilidade.
   Dito isto, meteu-se pelo atalho e começou a andar em passo acelerado: tão acelerado, que auase parecia que corria. E ao menor ruído que ouvia olhava logo para trás, com medo de ser seguido pelo terrível Tubarão do tamanho de um prédio de cinco andares e com um comboio na boca.
   Depois de meia hora de caminho chegou a um pequeno povoado que se chamava Terra das Abelhas Laboriosas. As ruas fervilhavam de pessoas que corriam de um lado para o outro ocupadas com os seus afazeres: todos trabalhavam, todos tinham alguma coisa para fazer. Não se encontrava um ocioso ou um vadio, nem mesmo procurando com uma lanterna.
    - Já percebi – dissde imediatamente o preguiçoso do Pinóquio. – Esta terra não é feita para mim. Eu não nasci para trabalhar.
   Entretanto a fome atormentava-o, poi já havia mais de vinte e quatro horas que não comia nada, nem sequer um prato de ervilhacas.
    O que fazer?
    Só lhe restavam duas maneiras de poder comer alguma coisa: ou pedir que lhe dessem trabalho, ou então pedir a esmola de um cêntimo ou de um naco de pão.
   De pedir esmola tinha vergonha, porque o seu pai sempre lhe dissera que só os velhos e os enfermos têm o direito de pedir esmola. Os verdadeiros pobres deste mundo, merecedores de auxílio e de compaixão, são só aqueles que, devido à idade ou à doença, estão condenados a não poder ganhar o pão com o trabalho das suas mãos. Todos os outros têm a obrigação de trabalhar; e se não trabalharem e passarem fome, pior para eles.
    Naquele ínterim passou pela rua um homem todo suado e ofegante que puxava sozinho, com grande esforço, duas carroças carregadas de carvão.
Pinóquio, achando que ele tinha cara de ser boa pessoa, chegou-se a ele e, baixando os olhos com vergonha, disse-lhe em voz baixa:
      - Tem a bondade de me dar um cêntimo, pois estou a morrer de fome?
     - Não te dou só um cêntimo – respondei o carvoeiro – mas sim quatro, na condição de me ajudares a puxar até casa estas duas carroças de carvão.
    - Essa é boa! – respondeu Pinóquio quase ofendido. – Para sua informação, nunca fui burro de carga: nunca puxei nenhuma carroça!
     - Sorte a tua! – respondeu o carvoeiro. – Pois então, meu rapaz, se estás mesmo a morrer de fome, come duas fatias da tua soberba, e tem cuidado para não apanhares nenhuma indigestão.
   Poucos minutos depois passou pela rua um pedreiro que levava aos ombros um balde de argamassa.
    - Bom homem, terias a bondade de dar um cêntimo a um pobre rapaz que está para aqui a bocejar de fome?
   - De boa vontade. Vem transportar argamassa comigo – respondeu o pedreiro – e em vez de um cêntimo dou-te cinco.
    - Mas a argamassa é pesada – replicou Pinóquio -, e eu não quero cansar-me.
    Se não te queres cansar, então, rapaz, diverte-te a bocejar, e bom proveito te faça.
    Em menos de meia hora passaram mais vinte pessoas e a todos Pinóquio pediu esmola, mas todos lhe responderam:
   - Não tens vergonha? Em vez de andares aí pela rua feito vadio, vai mas é procurar trabalho e aprende a ganhar o pão.
     Por fim passou uma mulherzinha bondosa que levava duas bilhas de água.
    - Não te importas, bondosa mulher, que eu beba um gole de água da tua bilha? – disse Pinóquio, que estava a arder de sede.
     - Bebe à vontade , rapaz – disse a mulherzinha, pousando as duas bilhas no chão.
Depois de ter bebido como uma esponja, Pinóquio resmungou entre dentes, limpando a boca:
     - A sede já eu matei. Assim pudesse matar a fome!
     A boa mulher, ouvindo estas palavras, acrescentou logo:
     - Se me ajudares a levar uma destas bilhas de água até casa, dou-te um bom pedaço de pão.
     Pinóquio olhou para a bilha e não respondeu nem que sim nem que não.
    - E para acompanhar o pão dou-te um belo prato de couve-flor temperada com azeite e vinagre – acrescentou a bondosa mulher.
     Pinóquio deu mais uma olhadela à bilha, e não respondeu nem que sim nem que não.
     - E depois da couve-flor dou-te um bombom com recheio de licor.
    Seduzido por esta última guloseima, Pinóquio não foi capaz de resistir e, ganhando coragem, disse:
     - Paciência! Levo-lhe a bilha até casa.
     A bilha era muito pesada e Pinóquio, não tendo força para a levar nas mãos, resignou-se a levá-la à cabeça.
     Chegados a casa, a boa mulher disse a Pinóquio que se sentasse a uma mesinha já posta, e colocou na sua frente o pão, a couve-flor temperada e o bombom.
     Pinóquio não comeu, devorou. O seu estômago parecia um quarteirão vazio e desabitado há cinco meses.
    Acalmando pouca a pouco as ferroadas violentas da fome, a certa altura levantou a cabeça para agradecer á sua benfeitora; mas ainda não acabara de olhar bem para a cara dela quando soltou um longo ahhh!... de espanto e ficou como que enfeitiçado, de olhos esbugalhados, com o garfo suspenso no ar e a boca cheia de pão e couve-flor.
     - Mas o que vem a ser todo esse espanto? – disse a rir a boa mulher.
    - É que... – respondeu Pinóquio a gaguejar -, é que... é que... te pareces... fazes-me lembrar... sim, sim, sim, a mesma voz... os mesmos olhos... os mesmos cabelos... sim, sim, sim, também tens os cabelos azul-turquesa... como ela!... Ó minha Fadazinha, minha Fadazinha!... diz-me que és tu, que és mesmo tu! Não me faças chorar mais! Se soubesses!... Chorei tanto, sofri tanto!...
    E enquanto assim falava, Pinóquio chorava copiosamente e, ajoelhado no chão, abraçava os joelhos daquela mulher misteriosa.

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia)Se detectarem algum erro ou gralha, agradecemos que nos enviem um mail a alertar

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