domingo, 17 de maio de 2020

PINÓQUIO # 17 - Capitulo XVII de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XVII

Pinóquio come açúcar, mas não quer tomar a purga; porém, quando vê os cangalheiros que vêm busca-lo, toma logo a purga. Depois diz uma mentira, e como castigo cresce-lhe o nariz.

    Assim que os três médicos saíram do quarto, a Fada aproximou-se de Pinóquio e, depois de lhe apalpado a testa, viu que ele estava atacado por um febrão descomunal.
  Então, dissolveu um pozinho branco em meio copo de água e, estendendo-lhe, disse-lhe amorosamente:
     - Bebe isto, e dentro de poucos dias estarás curado.
     Pinóquio olhou para o copo, torceu um pouco o nariz e depois perguntou com voz de choro:
     - É doce ou amargo?
     - É amargo, mas vai-te fazer bem.
     - Faz o que eu te digo: bebe.
     - Eu não gosto de coisas amargas.
     - Bebe, que depois de beberes dou-te um torrão de açúcar para te tirar o mau gosto da boca.
     - Onde está o torrão de açúcar?
     - Aqui está ele – disse a Fada, tirando-o de um açucareiro de ouro.
     - Primeiro quero o torrão de açúcar, e depois bebo aquela mistela amarga.
     - Prometes-me?
     - Sim.
    A Fada deu-lhe o torrão, e Pinóquio, depois de o ter trincado e engolido num ápice, disse lambendo os lábios:
     - Era tão bom se o açúcar também fosse um remédio!... Purgava-me todos os dias.
     - Agora cumpre a promessa e bebe estas poucas gotas de água que te devolverão a saúde.
    Pinóquio pegou no copo de má vontade e meteu a ponta do nariz lá dentro; depois encostou-o à boca, depois voltou a meter a ponta do nariz, e por fim disse:
     - É muito amarga, amarga demais! Não consigo bebê-la.
     - Como podes dizer isso, se nem sequer provaste?
     - Imagino! Senti o cheiro. Primeiro quero outro torrão de açúcar... e depois bebo.
    Então a Fada, com toda a paciência de uma boa mãe, meteu-lhe na boca mais um bocadinho de açúcar; e em seguida apresentou-lhe outro vez o copo.
      - Assim não consigo beber – disse o boneco, fazendo mil caretas.
      - Porquê?
      - Porque me incomoda aquela almofada que tenho em cima dos pés.
      A Fada tirou dali a almofada.
      - Não adianta! Nem assim consigo beber.
      - Que mais é que te incomoda?
      - Incomoda-me a porta do quarto, que está meia aberta.
      A Fada foi fechar a porta do quarto.
     - Seja como for – gritou Pinóquio, rompendo em pranto -, não quero beber esta mistela amarga; não, não e não!
      - Vais arrepender-te, meu rapaz.
      - Não me interessa.
      - A tua doença é grave.
      - Não me interessa.
      - A febre leva-te em poucas horas para o outro mundo.
      - Não me interessa.
      - Não tens medo da morte?
      - Medo nenhum!... Antes morrer do que beber aquele remédio horrível.
     Nesse momento a porta do quarto escancarou-se e entraram quatro coelhos negros como a tinta, que traziam aos ombros um pequeno caixão.
      - O que querem de mim? – gritou Pinóquio, cheio de medo, sentando-se muito direito na cama.
      - Viemos buscar-te – respondeu o coelho maior.
      - Buscar-me?... Mas eu ainda não morri!
     - Ainda não, mas restam-te poucos minutos de vida, uma vez que te recusaste a beber o remédio que te iria curar da febre.
      - Ó minha Fada, minha boa Fada! – começou a gritar Pinóquio. – Dá-me já esse copo. Despacha-te, por favor, que eu não quero morrer; não, não quero morrer!
       E, agarrando o copo com as duas mãos, esvaziou-o num abrir e fechar de olhos.
       - Paciência! – disseram os coelhos. – Desta vez fizemos a viagem em vão.
      E, pondo de novo o pequeno caixão aos ombros, saíram do quarto resmungando e murmuraram entre dentes.
      A verdade é que dali a poucos minutos Pinóquio saltou da cama, já curado; pois é bom que se saiba que os bonecos de madeira têm o privilégio de adoecerem raramente e de se curarem num instante.
        E a Fada, vendo-o correr e saltar pelo quarto, vivaço e alegre como um passarinho, disse-lhe:
        - Portanto, o meu remédio fez-te realmente bem?
        - Mais do que bem! Trouxe-me de volta ao mundo.
        - Então, por que motivo te fizeste tão rogado para o beber?
        - É que nós, os garotos, somos todos assim. Temos mais medo dos remédios do que do mal.
       - Que vergonha! Os garotos deviam saber que um bom remédio, tomado a tempo, pode salvá-lo de uma doença grave e talvez mesmo da morte.
        - Ah, mas para a outra vez não me farei tão rogado. Lembrei-me daqueles coelhos negros com o caixão aos ombros... e então pego logo no copo e... cá vai disto!
         - Agora vem aqui ao pé de mim e conta-me lá como foi que caíste nas mãos dos assassinos.
      - Aconteceu que Trinca-Fortes, o homem dos fantoches, me deu umas moedas de outro e me disse: “Toma, leva-as ao teu pai”, e eu em vez disso encontrei pelo caminho uma Raposa e um Gato, duas pessoas muito honestas, que me disseram: “Queres que estas cinco moedas se transformem em mil ou em duas mil? Vem connosco, que nós levamos-te ao Campo dos Milagres.” E eu disse: “Vamos”, e eles disseram: “Fazemos uma paragem aqui na estalagem do Lagostim Encarnado, e depois da meia-noite partimos.” E quando eu acordei eles já lá não estavam, porque tinham-se ido embora. Então eu pus-me a caminho de noite, mas fazia um escuro que até parecia impossível, por isso encontrei na estrada dois assassinos dentro de dois sacos de carvão, que me disseram: “Passa para cá o dinheiro”, e eu disse: “Não tenho”, porque as quatro moedas de ouro tinha-se escondidas na boca, e um dos assassinos tentou meter-me as mãos na boca, e eu com uma dentada arranquei-lhe a mão e depois cuspi-a, mas em vez de uma mão cuspi uma pata de gato. E os assassinos a correrem atrás de mim, e eu corre que corre, até que me apanharam e me amarraram pelo pescoço a uma árvore deste bosque, dizendo: “Amanhã voltamos aqui e então estarás morto e com a boca aberta, e assim tirar-te-emos as moedas de ouro que tens escondidas debaixo da língua.”
        - E agora onde é que puseste as quatro moedas? – perguntou-lhe a Fada.
      - Perdi-as – respondeu Pinóquio; mas disse uma mentira, porque a verdade é que as tinha no bolso.
        Assim que disse a mentira, o seu nariz, que já comprido, cresceu-lhe de repente mais dois dedos.
        - E onde foi que as perdeste?
        - No bosque aqui perto.
        A esta segunda mentira, o nariz continua a crescer.
       - Se as perdeste no bosque vizinho – disse a Fada -, vamos procura-las e havemos de encontrá-las: porque tudo aquilo que se perde neste bosque encontra-se sempre.
        - Ah! Agora que me estou a lembrar melhor – respondeu o boneco, atrapalhando-se -, as quatro moedas eu não as perdi; o que aconteceu foi que sem dar por isso as engoli enquanto bebia o remédio.
        A esta terceira mentira o nariz cresceu de modo tão descomunal que o pobre Pinóquio já não se podia virar para lado nenhum. Se se voltava para cá, batia com o nariz na cama ou nos vidros da janela; se se voltava para lá, batia com ele nas paredes ou na porta do quarto; e se levantasse um pouco mais a cabeça, corria o risco de espetá-lo num olho da Fada.
        E a Fada olhava para ele e ria-se.
        - Porque te ris? – perguntou-lhe o boneco, muito confuso e preocupado com aquela nariz que lhe crescia a olhos vistos.
        - Rio-me da mentira que disseste.
        - Como sabes que eu disse uma mentira?
       - As mentiras, meu menino, reconhecem-se logo, porque há-as de duas espécies: há as mentiras que têm as pernas curtas, e as mentiras que têm o nariz comprido. A tua é precisamente das que têm o nariz comprido.
        Pinóquio, sem saber onde esconder com a vergonha, tentou fugir do quarto; mas não foi capaz. O seu nariz tinha crescido tanto, que já não passava pela porta.

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia)
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