segunda-feira, 11 de maio de 2020

PINÓQUIO # 11 - Capitulo XI de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

XI

Trinca-Fortes espirra e perdoa a Pinóquio, o qual depois salva da morte o seu amigo Arlequim.

   Trinca-Fortes (1) (pois assim se chamava o dono dos fantoches) parecia um homem assustador, não digo o contrário, principalmente por causa daquela barbaça negra que lhe cobria o peito todo e as pernas como se fosse um avental; mas no fundo não era mau homem. A prova disso é que, quando viu diante de si o pobre Pinóquio que se debatia de todas as maneiras, gritando: “Não quero morrer, não quero morrer!”, começou logo a comover-se e a condoer-se; e depois de ter resistido um bom bocado, por fim não aguentou mais e deixou escapar um espirro muito sonoro.
   Ao ouvir aquele espirro, Arlequim, que até ali estivera triste a abatido como um salgueiro-chorão, ficou com a alegria estampada no rosto e, inclinando-se para Pinóquio, sussurrou-lhe baixinho:
   - Boas-novas, irmão! O nosso dono espirrou, e isso é sinal de que se compadeceu de ti e que já estás salvo.
  Porque é preciso que se saiba que enquanto todos os homens, quando se sentem condoídos de alguém, ou choram ou, pelo menos, fingem que enxugam os olhos, Trinca-Fortes cada vez que se comovia a sério tinha o costume de espirrar. Era uma maneira como outra qualquer de dar a conhecer aos outros a sensibilidade do seu coração.
    Depois de ter espirrado, o homem dos fantoches, continuando com os seus modos severos, gritou a Pinóquio:
  - Pára de chorar! Os teus lamentos já me provocaram uma dorzinha aqui no fundo do estômago... sinto um mal-estar que é como se... Atchim! Atchim! – e deu mais dois espirros.
   - Santinho! – disse Pinóquio.
   - Obrigada. Então o teu pai e a tua mãe ainda são vivos? – perguntou-lhe Trinca-Fortes.
   - O meu pai, sim; a minha mãe nunca a conheci.
  - Sabe-se lá que desgosto seria para o teu velho pais se eu agora te mandasse atirar para cima daqueles carvões em brasa! Pobre velho, sinto pena dele!... Atchim Atchim! Atchim! – e deu outros três espirros.
    - Santinho! – disse Pinóquio.
    - Obrigado! No entanto, também é preciso ter pena de mim, porque como vês não tenho mais lenha acabar de assar aquele carneiro, e tu neste caso tinhas-me dado muito jeito. Mas agora sinto-me condoído e há que ter paciência. Em vez de ti, ponho a arder por baixo do espeto um dos fantoches da munha companhia. Eh! Gendarmes!
   A esta voz de comendo apareceram imediatamente dois gendarmes de madeira, muito altos e muito magros, com o chapéu de bicos na cabeça e o sabre desembainhado na mão.
   Então, o homem dos fantoches disse-lhes com voz cavernosa:
   - Agarrem-me ali aquele Arlequim, amarrem-no bem e depois atirem-no para o fogo, para que arda. Quero que o meu carneiro fique bem assado.
   Imaginem o pobre Arlequim! Foi tal o seu pavor, que as pernas se lhe vergaram ele caiu de bruços no chão.
  Pinóquio, à vista daquele espectáculo lancinante, lançou-se aos pés do homem e, chorando abundantemente e molhando-lhe com as lágrimas todos os cabelos da longuíssima barba, começou a dizer com voz suplicante:
    - Piedade, senhor Trinca-Fortes!
    - Aqui não há senhores – respondeu com dureza o dono dos fantoches.
    - Piedade, senhor cavaleiro!
    - Aqui não cavaleiros.
    - Piedade, senhor comendador!
    - Aqui não comendadores.
    - Piedade, Excelência!
    Ao ouvir que lhe chamavam Excelência, o homem dos fantoches fez logo um trejeito de vaidade e, tornando-se de repente mais humano e mais afável, disse a Pinóquio:
    - Pois bem, o que queres de mim?
    - Peço-vos clemência para o pobre Arlequim.
    - Aqui não pode haver clemência. Se te poupei a ti, é preciso pô-lo a ele no lume, porque quero que o meu carneiro fique bem assado.
   - Nesse caso – gritou Pinóquio com bravura, pondo-se em pé e atirando para longe o chapéu de miolo de pão -, nesse caso sei qual é o meu dever. Avancem, senhores gendarmes! Amarrem-me e atirem-me para o meio daquelas chamas. Não, não é justo que o pobre Arlequim, o meu verdadeiro amigo, tenha de morrer por mim.
   Estas palavras, pronunciadas em voz alta e num tom heroico, fizeram chorar todos os fantoches que assistiram àquela cena. Os próprios gendarmes, apesar de serem de madeira, choravam como dois cordeirinhos de leite.
    A princípio, Trinca-Fortes permaneceu duro e imóvel como um bloco de gelo; mas depois, pouco a pouco, começou também a comover-se e a espirrar. Depois de ter dado quatro ou cinco espirros, abriu os braços afectuosamente e disse a Pinóquio:
    - És um rapaz corajoso: vem cá dar-me um beijo.
   Pinóquio correu logo para ele e, trepando como um esquilo pela sua barba acima, foi pousar-lhe um belo beijo na ponta do nariz.
   - Quer dizer que a clemência foi concedida? – perguntou o pobre Arlequim, num fiozinho de voz que mal se ouvia.
  - A clemência foi concedida – respondeu Trinca-Fortes; em seguida acrescentou, suspirando e abanando a cabeça:
   - Paciência! Por esta noite resigno-me a comer o carneiro meio cru; mas para a outra vez, ai daquele a quem calhar a sorte!
   Ao saberem que a clemência fora concedida, os fantoches correram todos para o palco e, acendendo as luzes e os candelabros como se fosse noite de gala, começaram a saltar e a dançar. Ao alvorecer ainda dançavam.

(1) Trinca-Fortes (Mangiafuoco no original italiano): indivíduo fanfarrão, que alardeia grande valentia mas que no fundo tem um “coração de manteiga”. (N. da T.)

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia)
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