segunda-feira, 4 de maio de 2020

PINÓQUIO # 7 - Capitulo VII de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

   Capítulo VII

Gepeto volta para casa e dá ao boneco o pequeno-almoço que tinha trazido para si.

  O pobre Pinóquio, com os olhos ensonados, ainda não se apercebera de que tinha os pés todos queimados; por isso, assim que ouviu a voz do pai, saltou do banco para ir a correr tirar a tranca da porta; porém, depois de cambalear duas ou três vezes, caiu desamparado e ficou estendido ao comprido no chão.
   Quando bateu no chão fez o mesmo barulho que teria feito um saco cheio de colheres de pau caído de um quinto andar.
    - Abre-me a porta! – gritava entretanto Gepeto, do lado fora.
    - Não posso, pai – respondia Pinóquio a chorar e a rebolar-se no chão.
    - Não podes porquê?
    - Porque me comeram os pés.
    - E quem é que tos comeu?
    - Foi o gato – disse Pinóquio, ao ver o gato que se divertia fazendo dançar as lascas de madeira com as patinhas da frente.
    - Abre, já te disse! – repetiu Gepeto. – Senão, quando estiver aí dentro quem te dá o gato sou eu!
    - Não me aguento de pé, acredite. Ai, pobre de mim, pobre de mim que vou ter de andar de joelhos o resto da vida!...
   Gepeto, pensando que estas lamúrias todas fossem mais uma maroteira de Pinóqui, resolveu acabar com aquilo e, trepando pela parede, entrou em casa pela janela.
   A princípio queria dizer e fazer muita coisa; mas depois, quando viu Pinóquio estendido no chão e que era verdade que ficara sem pés, sentiu-se comover e, pegando nele ao colo, começou a beijá-lo e a fazer-lhe muitas festas e mimos, e com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces, disse-lhe, soluçando:
    - Meu Pinoquiozinho, como foi que queimaste os pés?
    - Não sei, pai, mas acredito que foi uma noite muito infernal e que me hei-de lembrar dela enquanto for vivo. Trovejava, relampejava, e eu tinha muita fome, e então o Grilo-Falante disse-me:
    - É bem feito: foste mau, portanto agora mereces isso”; e eu disse-lhe: “Toma cuidado, Grilo!...” e ele disse-me: - Tu és um boneco e tens cabeça de pau” e eu atirei-lhe o cabo do martelo e ele morreu, mas a culpa disso é que eu pus uma frigideira em cima do lume da braseira, mas o pintainho fugiu lá para fora e disse: “Até à vista... e muito cumprimentos lá em casa” e a fome sempre a crescer, e foi por isso que aquele velhote com o barrete de dormir, assomando-se à janela, me disse: “Põe-te aqui por baixo e apara o chapéu”; e eu, depois de levar com aquela bacia de água pela cabeça abaixo (porque pedir um bocadinho de pão não é vergonha nenhuma, pois não?) voltei logo para casa, e como continuava a ter muita fome pus os pés em cima da braseira para os enxugar, e tu voltaste para casa e eu descubro que os tinha queimado, e entretanto continuo a ter fome e os pés já não os tenho!
    - Ih!... Ih!... Ih!... Ih!...
   E o desgraçado do Pinóquio começou a chorar e a berrar com tanta força, que se ouvia a cinco quilómetros de distância. Gepeto, que de toda aquela confusão de conversa só tinha percebido uma coisa, isto é, que o seu boneco estava a morrer de fome, tirou do bolso três peras e estendendo-lhe disse:
    - Estas três peras eram para o meu pequeno- almoço, mas dou-tas de boa vontade. Come-as, e que te façam bom proveito.
    - Se queres que eu as coma, faz-me o favor de as descascar.
    - Descascá-las? – respondeu Gepeto, espantado. – Nunca ninguém podia imaginar que tu, meu rapaz, fosses tão bichoso e tão esquisito de boca. Está mal! Neste mundo, é preciso habituarmo-nos desde pequeninos a ter boa boca e a comer de tudo, porque nunca se sabe que nos pode acontecer. Já se viu tanta coisa!...
    - Podes ter muita razão – acrescentou Pinóquio -, mas eu nunca hei de comer nenhuma fruta que não esteja descascada. Não suporto cascas.
   E o bondoso do Gepeto foi buscar um canivete e, cheio de santa paciência, descascou as três peras e pousou as cascas todas num canto da mesa.
   Quando Pinóquio, em duas dentadas, comeu a primeira pera, fez o gesto de deitar fora o cascabulho; mas Gepeto susteve-lhe o braço, dizendo:
    - Não o deites fora: neste mundo, tudo pode dar jeito.
    - Mas eu não como o cascabulho de certeza – gritou, contorcendo-se como uma víbora.
    - Sabe-se lá! Já se viu tanta coisa!... – repetiu Gepeto mantendo-se calmo.
    A verdade é que os três cascabulhos, em vez de serem atirados pela janela, foram colocados no canto da mesa juntamente com as cascas.
   Comidas, ou melhor, devoradas as três peras, Pinóquio deu um longo bocejo e disse, choramingando:
    - Ainda tenho fome!
    - Mas, meu rapaz, eu não tenho mais nada que te dê.
    - Mesmo nada, nada?
    - A única coisa que tenho são estas cascas e estes casculhos de peras.
    - Paciência! – disse Pinóquio. – Se não há mais nada, como uma casca.
   E começou a mastigar. A princípio torceu um bocado o nariz; mas depois, uma após outra, de um fôlego limpou as cascas todas, e depois das cascas os cascabulhos; e quando já tinha comido tudo, bateu com as mãos no corpo de contentamento e disse, rejubilando:
    - Agora é que estou mesmo bem!
    - Portanto, como vês – observou Gepeto -, eu tinha razão quando te dizia que não devemos habituar-nos a ser demasiado esquisitos nem demasiados delicados de boca. Meu amigo, nunca se sabe o que nos pode acontecer neste mundo. Já se viu tanta coisa!...


"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia)
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