segunda-feira, 20 de abril de 2020

PINÓQUIO # 1 de Carlo Collodi (publicado em 1881 - Itália)

Capítulo I

Como foi que mestre cereja, carpinteiro, achou um pedaço de madeira que chorava e ria como uma criança.

    Era uma vez...
    - Um rei! – dirão imediatamente os meus pequenos leitores.
    Não, meninos, estão enganados. Era uma vez um pedaço de madeira.
    Não era nenhuma madeira de luxo mas um simples bocado de lenha, daqueles que no Inverno se põem nos fogões e nas lareiras para acender o lume e para aquecer as casas. Não sei como é que ele conseguia andar, mas o que é certo que um belo dia esse pedaço de madeira apareceu na oficina de um velho carpinteiro que se chamava mestre António, mas a quem toda a gente chamava mestre Cereja por causa da ponta do seu nariz, que estava sempre brilhante e vermelha como uma cereja madura.
    Assim que mestre Cereja viu aquele pedaço de madeira ficou contente e, esfregando as mãos de satisfação, murmurou em voz baixa:
    - Este pau apareceu na hora certa: vou usá-lo para fazer uma perna para uma mesinha.
    Dito e feito. Pegou logo num machado afiado para começar a arrancar-lhe a casca e a desbastá-lo; mas quando estava mesmo para lhe dar a primeira machadada, ficou com o braço suspenso no ar, porque ouviu uma vozinha muito fina que lhe disse, em tom de súplica:
    - Não me batas com muita força!
    Imaginem como ficou o bom do velho mestre Cereja.
    Olhou em volta com os olhos espantados, para ver de onde é que podia ter saído aquela vozinha, mas não viu ninguém; espreitou dentro do armário que estava fechado, e nada; viu no cesto das aparas e da serradura, e nada; abriu a porta da oficina para dar também uma olhadela à rua, e nada. Ora esta!...
    - Já percebi – disse então a rir e coçando o chinó. – Está-se mesmo a ver que aquela vozinha fui eu que a imaginei. Voltemos ao trabalho.
    - E, voltando a pegar no machado, deu um golpe em cheio no pedaço de madeira.
    - Ai, fizeste-me mal! – gritou, queixando-se, a mesma vozinha.
    Desta vez, mestre Cereja ficou estupefacto, com os olhos esbugalhados de medo, a boca escancarada e a língua pendurada até ao queixo, como a carranca de uma fonte.
    Assim que recuperou a fala começou a dizer, tremendo e gaguejando por causa do susto:
    - Mas de onde terá saído esta vozinha que disse “ai”?... O que é certo é que aqui não há vivalma. Será por acaso este pedaço de madeira, que aprendeu a chorar e a queixar-se como uma criança? Não posso crer nisso. Este pau está-se a ver o que é: é um bocado de lenha para a lareira igual a todos os outros; e se o deitamos para o lume, temos com que cozer uma panela de feijões. Espera aí!... E se alguém se escondeu dentro dele? Se estiver alguém escondido, tanto pior para ele. Eu já o meto na ordem!
    E dizendo isto, agarrou aquele pobre pedaço de madeira com as duas mãos e pôs-se a bater com ele nas paredes da oficina, sem piedade.
    Depois pôs-se à escuta, para ver se ouvia alguma vozinha a queixar-se. Esperou dois minutos, e nada; cinco minutos, e nada; dez minutos, e nada.
    - Já percebi – disse então, fazendo um esforço para rir e despenteando o chinó. – Está-se mesmo a ver que aquela vozinha que disse “ai” foi imaginada por mim. Voltemos ao trabalho!
    E, como se sentia cheio de medo, experimentou a cantarolar para ganhar um pouco de coragem.
    Entretanto, pondo de lado o machado, pegou na plaina para alisar e polir o bocado de madeira; mas, enquanto o alisava com a plaina para baixo e para cima, ouviu a mesma vozinha que lhe disse a rir:
    - Pára com isso! Estás a fazer-me cócegas no corpo!
    Desta vez, o pobre do mestre Cereja caiu como que fulminado. Quando reabriu os olhos, encontrou-se sentado no chão.
    O seu rosto parecia desfigurado, e até a ponta do nariz, em vez de vermelha como estava quase sempre, se tornara azul-turquesa com o medo.

"As Aventuras de Pinóquio - História de um Boneco" Ed. Cavalo de Ferroa, 2004  |  Tradução de Margarida Periquito  (escrito de acordo com a antiga ortografia)
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